Manuel Lopes escritor. Aos noventa e seis anos de idade, vive despercebidamente, num dos bairros da zona antiga de Lisboa, o último sobrevivente da primeira geração “Claridosa” cabo-verdiana, Manuel Lopes.
Poeta sensível e ensaísta perspicaz, é no entanto na ficção que Manuel Lopes mais se irá distinguir, retratando com particular empatia humana e mestria artística, através das personagens que cria, a tragédia das estiagens de Cabo Verde.
Os seus romances Chuva Braba (1956) e Os Flagelados do Vento Leste (1960), bem como o livro de contos O Galo Cantou na Baía (1959), foram alvo de tradução para várias línguas e agraciados com os prémios literários Fernão Mendes Pinto (Chuva Braba e O Galo Cantou na Baía) e Meio Milénio do Achamento das Ilhas de Cabo Verde (Os Flagelados do Vento Leste).
Tarda, no entender de muitos, um merecidíssimo Prémio Camões, para um autor que alçou através da sua escrita, de forma inigualável, as vivências de uma cultura de língua (não só, mas também) portuguesa à dimensão universal.
Manuel Lopes escritor
Manuel Lopes nasceu em S. Vicente a 23 de Dezembro de 1907. Aos catorze anos, desígnios de família obrigaram-no a contra-gosto a deixar a sua ilha para ir residir em Coimbra.
Esse desenraizamento precoce, que vem a durar quatro anos, deixará marca indelével na memória e na personalidade do escritor, estando porventura subjacente ao sentimento de nostalgia que atravessa toda a sua obra, particularmente a sua poesia.
Da ida para Coimbra, donde “desanda” para S. Vicente tão logo possa dispor de si mesmo, diz ter sido “um erro absoluto.” Era em S. Vicente, entre os amigos e a sua gente, que queria estar. Aí arranja o primeiro emprego, no Telégrafo Inglês, e entrega-se com gosto, entre inícios de 1930 e 1944, quando volta a deixar Cabo Verde, aos estímulos que a cultura mindelense da época tinha para lhe oferecer: tertúlias, “paródias,” actividades desportivas, os filmes americanos.
Leitor ávido, reserva no entanto um tempo muito especial ao “convívio” com a obra de contemporâneos seus, nomeadamente os neo-realistas portugueses e os autores “regionalistas” brasileiros. É, aliás, na senda regionalista que lançará no Mindelo, em 1936, com Baltazar Lopes e Jorge Barbosa, a revista Claridade, dando então início, conjuntamente com esses companheiros, ao que viria a revelar-se o movimento intelectual cabo-verdiano mais marcante e influente até hoje.
Evocando anos mais tarde o contexto da publicação original de Claridade, que perduraria de forma intermitente até à década de sessenta, Baltazar Lopes diria: “Há pouco mais de vinte anos eu e um grupo de amigos começámos a pensar no nosso problema, isto é, no problema de Cabo Verde.
Preocupava-nos sobretudo o processo de formação social destas ilhas, o estudo das raízes de Cabo Verde.” A ilustrar a “preocupação” estaria a capa do primeiro número da revista, que inclui “2 motivos de Finaçon (batuque da ilha de Santiago).”
Curiosamente, apesar desta inclusão que dá destaque a uma das tradições cabo-verdianas mais combatidas pelas autoridades coloniais, em virtude do seu visível entroncamento nas culturas da África negra (o mesmo batuque de Santiago), a crítica cabo-verdiana, em especial a que se manifesta sob o impulso nacionalista, virá acusar os “claridosos” em geral de terem procurado “diluir” o contributo negro-africano na formação da identidade cabo-verdiana.
Do mesmo modo, essa crítica iria não poucas vezes fustigar Manuel Lopes pela sua aparente recusa em confrontar abertamente, por meio de um discurso politizado, o abandono a que se encontrava votado Cabo Verde.
No entanto, é incontestável que Os Flagelados do Vento Leste terá sido das obras literárias que maior desconforto terá provocado em alguma da intelligentia portuguesa da época, sendo disso sintomático, por exemplo, que, em 1972, recenseando o romance, Óscar Lopes tivesse dito:
“Há quem tenha posto em dúvida a possibilidade de um romance português de categoria universal. Traduzam este romance, e verificaremos se interessa menos lá fora do que o melhor de Jorge Amado, Lins do Rego ou Graciliano Ramos. A mim interessa mais: responsabiliza-me pessoalmente.” (sublinhado nosso).
Em 1984, em nota introdutória à segunda edição do romance, Manuel Lopes não se coibiria de endereçar as críticas que lhe vinham sendo feitas ao longo das décadas anteriores, clarificando aí as premissas que o nortearam como romancista: “Escolhi então,” diz na nota, “a arma mais eficaz do ficcionista: a “discreta” denúncia duma situação histórica, sem apontar o dedo acusatório, apenas com o intuito de transmitir aos outros (é a nossa grande força interior) os mesmos sentimentos, a mesma repulsa que me assaltaram, levando-lhes a experiência da minha perplexidade (e da minha esperança), sem disfarces ou fácil demagogia, mas com a mais sincera humildade, para que achassem eco no silêncio da sua solidão e das suas consciências; dizer-lhes, em suma, que algures numas indefesas ilhas do Atlântico em plena rota da chamada civilização ocidental, neste século das solidariedades, um mal devastador exigia a presença imediata e constante do clínico, não para disfarçar a anomalia, mas para se evidenciar capaz de fornecer a terapêutica adequada a recuperação e sobrevivência de um povo, que ousou contrariar os desígnios da natureza [.]“.
Transferido de São Vicente, em 1944, para a ilha do Faial, nos Açores, Manuel Lopes de novo partirá, desta vez de forma definitiva, de Cabo Verde. Mas não sem que tivesse antes, no entanto, testemunhado pessoalmente, na ilha de Santo Antão, onde adquirira um terreno para cultivo, os efeitos atrozes da seca sobre o camponês cabo-verdiano.
É esse testemunho que serve de base aos seus dois magistrais romances. Durante a sua estadia nos Açores, redige um dos seus ensaios mais conhecidos, Os Meios Pequenos e a Cultura, que apresenta no Sporting Club da Horta em 1951, e publica os Poemas de Quem Ficou. Em 1966, já a residir em Lisboa, participa no VI Congresso Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, a decorrer nas Universidades de Harvard, Massachusetts, e Columbia, Nova Iorque.
Homem comedido, pouco dado a intervenções públicas, Manuel Lopes nunca perdeu, apesar de tudo, o gosto pelo convívio social e pela cavaqueira amena, em especial com os seus conterrâneos, cavaqueira que punha em dia, enquanto a saúde e a idade o permitiram, nos encontros ao fim de semana mantidos na sede da Associação dos Antigos Alunos do Ensino Secundário de Cabo Verde em Carnide.
Manuel Lopes, aqui lhe prestamos a nossa singela homenagem. Bem-haja pela sua perseverança, morabeza, sabedoria e humildade!
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